Lei 12.382/11: efeitos penais do adimplemento tributário e a crise de legitimidade do Direito Penal

A crise de legitimidade do Direito Penal não é um fenômeno novo e vem sendo denunciada por diversos autores que, pela mera observação da realidade de seus ordenamentos jurídicos, podem perceber que aquele Direito Penal que focava seus objetivos na proteção de bens jurídicos fundamentais e na garantia das liberdades do cidadão fora cambiado por um Direito Penal a serviço exclusivo do Estado.

A crise de legitimidade do Direito Penal não é um fenômeno novo e vem sendo denunciada por diversos autores nacionais1 e estrangeiros2 que, pela mera observação da realidade de seus ordenamentos jurídicos, podem perceber que aquele Direito Penal que focava seus objetivos na proteção de bens jurídicos fundamentais e na garantia das liberdades individuais do cidadão fora cambiado por um Direito Penal a serviço exclusivo dos interesses do Estado.

Como em diversos países do mundo, no Brasil, princípios de Direito Penal vêm sendo diluídos para se adaptar a novas realidades: legalidade, taxatividade, subsidiariedade, fragmentariedade, presunção da inocência, lesividade, proteção exclusiva de bens jurídicos relevantes, são exemplos de princípios que vêm sendo deformados para que se permita sua aplicação aos novos tipos penais cada vez mais abertos, imprecisos, inúteis, ineficazes e, acima de tudo, com objetos ilegítimos de proteção penal.

Quando os princípios fundantes de um sistema são deformados, pouco sobra de sua estrutura original. Cria-se um novo sistema jurídico-penal, que compete, sobreleva e contamina o sistema original. Um novo sistema que, no caso vertente, curiosamente, procura herdar os fundamentos de legitimidade do sistema anterior, qual seja, a proteção de bens jurídicos.

Nessa direção, Hassemer3 denuncia que a proteção exclusiva dos bens jurídicos teria se transformado de um princípio negativo (não há crime sem lesão ou perigo de lesão a bens jurídicos) em um princípio positivo criminalizante, exigindo-se a criminalização de condutas que ofendam “bens jurídicos”, que na verdade, por trás do rótulo, escondem a defesa de meros interesses e funções estatais.

O bem jurídico penal torna-se apenas um nome escolhido pelo legislador para fundamentar a incriminação, um símbolo vazio a serviço da legitimação do poder de punir que, ao invés do comprometimento com a manutenção das estruturas básicas sociais, agora é empregado para manutenção de funções administrativas, refletindo o genuíno uso da força na perseguição dos objetivos políticos do Estado.

No Brasil, o fenômeno é claro e pode ser observado na superficial análise dos tipos penais contidos na lei de crimes ambientais (clique aqui) e na lei de crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (clique aqui), além das inúmeras leis esparsas de natureza não penal, que, entre suas disposições, criam tipos penais com o nítido objetivo de assegurar a obediência dos regramentos administrativos. Ex.: lei de incorporações imobiliárias (art. 65 da lei 4.591/64 – clique aqui), lei dos transplantes (art. 18 da lei 9.434/97 – clique aqui), lei das telecomunicações (art. 183 da lei 9.472/97 – clique aqui) etc.

Mais emblemática é a disciplina dada aos Crimes contra a Ordem Tributária, que exibe de maneira escancarada a utilização do Direito Penal para fins meramente administrativos.

Em 2005, com a clareza que lhe é habitual, Antonio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo afirmava que os crimes tributários vinham se “mostrando como instrumento de pressão, utilizado pelo Fisco, para cobrar os contribuintes, e amoldável às conveniências da política econômica do momento”4.

A realidade narrada à época se mantém. A estrutura aberta dos tipos penais da lei 8.137/90 (clique aqui), a interpretação jurisprudencial sobre a desnecessidade de dolo específico de sonegação, a comunicação precoce ao Ministério Público sobre meras autuações fiscais a ensejar a perseguição penal, tudo isso escancara a utilização do aparato punitivo estatal como ferramenta de fiscalização e cobrança de tributos, em uma nítida apropriação do Direito Penal pelo Estado para a atribuição de funções que não são próprias a esse ramo do direito.

Nesse cenário, o reconhecimento do parcelamento e do pagamento dos tributos como causas, respectivamente, de suspensão e extinção da pretensão punitiva estatal, trouxe grande avanço no tocante à teoria do bem jurídico, pois fez do dano ao erário, circunstância indispensável à punibilidade.

Por outro lado, absurda foi a imposição de marcos temporais para o reconhecimento de sua eficácia. Mencionados dispositivos deixam claro seus objetivos: que o tributo seja pago, da maneira mais rápida e com a menor discussão possível sobre a efetiva existência do crédito tributário, seja no âmbito administrativo, seja na esfera judicial, em patente agressão ao art. 5º, LIV, LV e XXXV, da Constituição Federal (clique aqui).

Um breve retrospecto sobre os efeitos do adimplemento dos tributos nos leva ao art. 14 da lei 8.137/90 (clique aqui), que determinava que o pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia extinguia a punibilidade do tributo. Mencionado dispositivo foi revogado pelo art. 98 da lei 8.383/91 (clique aqui). De 1991 até 1995, o pagamento do tributo não trazia qualquer efeito na esfera penal. Em 1995, entra em vigor a lei 9.249/95 (clique aqui), cujo art. 34 previa a extinção da punibilidade pelo pagamento, desde que efetuado antes do recebimento da denúncia.

Em 2000, entra em vigor a lei 9.964/00 (clique aqui) – a lei do REFIS – que por meio de seu art. 15, inova ao instituir o parcelamento como causa de suspensão da pretensão punitiva, desde que a adesão ao programa ocorra até o recebimento da denúncia. Três anos depois, entraria em vigor a lei 10.684/03 (clique aqui) – REFIS II ou PAES – suprimindo o marco temporal para a aposição dos efeitos ao pagamento e parcelamento, mesma disciplina adotada pela lei 11.941/09 (clique aqui) – REFIS da Crise5.

Recentemente, entrou em vigor a lei 12.382/11 (clique aqui) que, além de instituir o valor do novo salário mínimo Federal, de maneira sub-reptícia, por meio de seu art. 6º, alterou a disciplina do pagamento e do parcelamento dos tributos na esfera penal, voltando a adotar o marco temporal do recebimento da denúncia como condição para que surtam os efeitos extintivos ou suspensivos da punibilidade, em um flagrante retrocesso legislativo.

Pergunta-se: sob o enfoque da teoria do delito, o que muda se o pagamento for feito antes ou depois do recebimento da denúncia? Absolutamente nada. E isso porque o pagamento do tributo altera a estrutura do próprio fato jurídico, suprimindo uma das elementares do tipo penal, qual seja, a “supressão ou redução do tributo”. Assim, inexistente elemento objetivo do tipo penal, seja antes ou depois do início da ação penal, torna-se atípica a conduta, extinguindo-se dessa forma a punibilidade da conduta.

Contudo, quando se muda o enfoque da teoria do delito para o enfoque dos interesses político-econômicos do Estado são descortinados os reais motivos da alteração legislativa.

A intenção e a fórmula da norma são claras: arrecadar mais, com mais velocidade, dissuadindo o contribuinte de contestar a obrigação tributária nos âmbitos administrativos e judiciais, pois, se às vésperas do fim do inquérito policial não se optar pelo parcelamento ou pagamento, de nada adiantará fazê-lo depois.

Revela-se, assim, um sutil modo coercitivo para pagamento de tributos, que se pretende fazer legítimo por força de lei. Lembramos, a propósito, que em diversas ocasiões o Poder Judiciário foi instado a se manifestar a respeito de situações nas quais o Estado se utilizou de vias oblíquas para forçar o pagamento de tributos pelo contribuinte, tendo, em todas elas, rechaçado veemente tal pretensão6.

É certo que vozes se insurgirão dizendo que a imposição dos marcos temporais é uma mera escolha de política criminal, cabendo ao legislador decidir sobre sua existência ou não, mesmo porque, economicamente, a medida pode até ser prejudicial à arrecadação (pois, uma vez denunciado, o contribuinte não terá qualquer estímulo para aderir a um plano de pagamento ou parcelamento).

Entretanto, é importante que se frise que não há nada de política criminal na medida, mas sim o uso político do sistema jurídico penal para perseguição de objetivos macroeconômicos, o que é inaceitável em um Estado que pretende ser visto como Liberal e Democrático.

Não satisfeito com o domínio do Parlamento, o Governo agora confisca o poder punitivo do Direito Penal para dar eficácia a suas políticas econômicas, transformando Delegacias Fazendárias em postos de cobrança de tributos, para operacionalizar uma moderna derrama, destinada a cobrir as dívidas herdadas do Governo anterior.

Quando se instrumentaliza o Direito Penal, quando é ele feito mero títere dos interesses político-econômicos, despreza-se o indispensável Direito de Liberdade, cuja restrição é usada de forma intimidadora não mais para garantir os valores fundamentais da sociedade, mas sim para atender às necessidades do Estado, cada vez menos Democrático e cada vez mais Soberano.

Recua-se, assim, ao período pré-iluminista, no qual soldados invadiam as casas dos servos para cobrar os tributos devidos, arrancando seus bens e levando-os cativos em caso de resistência. Pouca coisa diferente do que atualmente ocorre, salvo a roupagem legal com que hoje é travestida a mesmíssima política.

É lamentável que os princípios fundamentais inerentes ao Sistema Penal da fragmentariedade e subsidiariedade ou ultima ratio e as construções que deles derivam – Direito Penal mínimo e garantismo penal -, sejam lembrados na academia, mas não mais encontrem qualquer reflexo na atividade legislativa – movimentada pelo oportunismo e conveniência – e judiciária – que se omite de seu papel de declarar a inconstitucionalidade material dessas normas. Princípios esses que, face sua íntima ligação com a legitimidade do poder de punir, uma vez deformados e ignorados, explicam em boa parte a crise de legitimidade enfrentada por nosso Direito Penal.

Nesse cenário, torna-se cada vez mais urgente uma radical reforma da legislação penal, com a ampla descriminalização de condutas sem qualquer legitimidade penal, a qual, indispensavelmente, deverá ser acompanhada pelo fortalecimento do Direito Administrativo e de suas instituições, genuínas ferramentas de regulação e de apoio aos projetos do Estado, ao contrário do Direito Penal. E um bom começo seria a imediata revogação do art. 6º da lei 12.382/11.

Este artigo foi originalmente publicado em https://www.migalhas.com.br/depeso/126295/a-importancia-do–criminal-compliance por Bruno Salles Ribeiro

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