As viagens do IBCCRIM

Artigo de Bruno Salles Ribeiro, em co-autoria com os professores Guilherme Brenner Lucchesi, Marcelo Ruivo e Nicole Trauczynski

O evento Ciências Criminais: novos desafios (IBCCRIM Região Sul) em homenagem aos 30 anos do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – organizado pelas Coordenadorias Regionais do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná – aconteceu em Florianópolis, nesta segunda-feira, 19/09. O evento reuniu palestrantes de diferentes regiões do Brasil na Escola Superior de Advocacia (ESA) da Ordem dos Advogados do Brasil (Seccional de Santa Cantarina).

Congressos são momentos únicos de encontros de pessoas e de ideias sobre reflexões instigantes acerca de temas que vão muito além dos nossos interesses primeiros ou objeto de pesquisa. A própria etimologia da palavra indica que caminhamos junto com os expositores em suas pesquisas, meditações, inquietações e apresentações, quando frequentamos um congresso.

No ano de 2022, após a normalização dos eventos presenciais, o IBCCRIM voltou a realizar congressos regionais, resgatando a prática das origens do Instituto de fomentar a discussão das ciências criminais nos vários cantos do nosso país plural e de dimensões continentais. Com esse objetivo, neste ano foram realizados eventos em Salvador/BA, Rio de Janeiro/RJ e, nesta semana, ocorreu a etapa da Região Sul, na ilha de Florianópolis/SC.

Quem acompanhou o congresso, de forma presencial ou remota, tiveram a oportunidade de percorrer as veredas do conhecimento científico e ouvir a palestra inicial de Marina Pinhão Coelho Araújo, que destacou o fomento do IBCCRIM para a troca de conhecimento entre pessoas das mais distintas regiões do Brasil. No mesmo painel, Guilherme Araújo discorreu sobre a desnutrição do conteúdo material dos conceitos de ordem pública e de ordem econômica que tem sido utilizados de maneira pouco criteriosa para a justificação da prisão preventiva. Tema que viria a ser objeto de tratamento por Larissa Kretzer, ao demonstrar como essa flexibilização de conceitos atende objetivos político-criminais não declarados, em prejuízo de direitos fundamentais e princípios processuais, sem que atinja os objetivos declarados. Marcelo Almeida Ruivo didaticamente nos levou a caminhar pela aparentemente tortuosa diferenciação entre dolo eventual e culpa consciente por meio de exemplos práticos do direito penal comum e empresarial. A finalidade era demonstrar que há delimitação teórica clara entre os conceitos o que permite entender melhor o exemplo do desastre da Boate Kiss, para o qual ofereceu brilhante parecer em conjunto com Alexandre Wunderlich. Enfatizou a importância da ciência penal cuidar de problemas práticos, colaborando para a melhora do sistema de justiça criminal e da orientação dos funcionamento das instâncias de controle.

A segunda parte da manhã seguiu no tema do Direito Penal Econômico. Registre-se que, antes disso, os caminhantes puderam ouvir o emocionado e emocionante depoimento de Adriano Galvão – professor em Santa Catarina que por mais de 10 anos foi colaborador do Instituto.  Disse que se sente parte integrante e indissociável do Instituto, como no mito do Flying Dutchman, no qual a sua tripulação fazia parte, materialmente do navio. Iniciando o painel, Nicole Trauczynski discorreu sobre “Limites e controvérsias da Colaboração Premiada”, indicando benefícios que poderiam ser advindos com a incorporação de práticas e objetivos da justiça restaurativa na cultura colaborativa, a fim de prever obrigações de fazer como reparação do dano mais efetivas à sociedade que o recolhimento pecuniário aos cofres públicos.  Tomando exemplos de casos concretos, mostrou como a deformação dos conceitos legais originais trouxe grandes problemas à aplicação da colaboração, mormente no que concerne à proliferação de prisões, à investigação indevida de familiares dos suspeitos, à impugnação por terceiros e à destinação dos valores arrecadados. Seguindo, Adriane Pires criticou o instituto do “Whistleblowing” na sua positivação pela lei brasileira pelo Pacote Anticrime, demonstrando conhecimento da prática em outras países, dificuldades práticas nacionais e limites éticos que mereceriam ser refletidos com mais profundidade. Chiavelli Falavigno, desde a Espanha, expôs a sua pesquisa sobre “Política legislativa na criminalidade econômica”, oportunidade em que os congressistas puderam observar a importância do método científico e da fixação de critérios rígidos para que sejam confiáveis resultados confiáveis. Dentre as conclusões de sua pesquisa, destaca-se o diagnóstico de que proliferação da política legislativa punitivista no âmbito econômico não encontra discrepâncias fundamentais nos distintos matizes ideológicos dos governos que se sucederam desde a redemocratização no Brasil.

O início da tarde adentrou com Luciano Góes, um catarinense que falou de Brasília com Exu na abertura da sua exposição, que criticou a estrada pavimentada pela branquitude e pelas estruturas racistas que sustentam nosso sistema de justiça e, principalmente, o criminal. Arrebatados os congressistas sentiam os golpes incômodos que o palestrante deliberadamente causava. Ainda com as estruturas abaladas, os viajantes ouviram Mário Barbosa comparar as sevícias impostas pela violência privada legalizada no odioso regime escravocrata que – um suspiro atrás em termos históricos – vigorava no Brasil e que ainda ecoam em torturas e assassinatos operados por agentes de segurança privada contra corpos negros. Ricardo Abraham, por fim, mostrou como esses sistema se camufla na política antidrogas, que também pode ser chamada de uma política antinegra.

O trecho seguinte da caminhada percorreu a criminologia e a política criminal, iniciando pela exposição do 2º Secretário do IBCCRIM, Bruno Salles, que brindou o público com sua análise da política criminal do Direito Penal Econômico, ressaltando que, a bem da verdade, todo o sistema penal é fundado em critérios econômicos e, portanto, seletivos. O painel da tarde também aprofundou na temática dos Crimes de Ódio, a partir da potente tese de doutorado da magistrada federal Claudia Maria Dadico, cuja conceituação teórica parte do reconhecimento do fenômeno da discriminação e da intolerância, tão perigosos à nossa democracia diante do vertiginoso crescimento de grupos extremistas no Brasil, que culminam no morticínio de negros, mulheres e pessoas LGBTQIA+.

Com o início da noite, o primeiro painel rumou para as novas tecnologias aplicada ao sistema de justiça criminal, trepidando os caminhos diante das incertezas que decorrem do uso de dados e outras informações sensíveis pelas agências de controle. Alexandre Morais da Rosa alertou o público para a necessidade de estratégia na atuação profissional, principalmente conhecendo o caminho do caso penal para mapear os pontos críticos do processo, usando a tecnologia em favor das partes. Seguindo por essa via, Luiz Eduardo Cani tratou das novas tecnologias e do “Big Processo” inquisitório, já não mais dividido em duas fases, mas, sim, em três: inteligência, investigação e processo. Com informações advindas das fontes de Big Data, a persecução penal inicia com uma verdadeira devassa a partir da “fishing Expedition”, em que todo o passado de dados registrados em sistemas open source estão disponíveis para a formação da narrativa da acusação. O painel foi finalizado por Rodrigo Oliveira de Camargo, cuja pesquisa sobre a LGPDCrim apresenta propostas para a regulamentação de uso de dados no Brasil, a partir da Convenção de Budapeste, propondo que seja prerrogativa da advocacia criminal o acesso integral às mesmas bases de dados utilizadas pelas agências de controle estatal.

Rumando ao fim de périplo, o painel final iniciou com a provocação de Bernardo Lajus a respeito da motivação e fundamentação das decisões judiciais, principalmente a partir do (pseudo-) princípio da confiança no juiz da causa, cuja aplicação tem esvaziado o próprio duplo grau de jurisdição e o efeito devolutivo da apelação criminal, ao permitir que o Tribunal de Apelação deixe de apreciar os fatos do caso. Na sequência desse caminhar, Guilherme Lucchesi trouxe apontamentos sobre as cautelares patrimoniais e as decretações desmedidas de sequestro que atingem a todos de modo solidário e independente da conduta individual eventualmente praticada, podendo gerar enriquecimento indevido pelo Estado. Por fim, Renato Stanziola Vieria finalizou a maratona jurídica com muita lucidez destacando a importância do controle da prova e os respectivos problemas decorrentes da confusão entre os momentos do procedimento probatório e da ausência de ato processual dedicado à admissibilidade das provas, o que é problemático num país de matriz inquisitória. Temas que já tinham sido tratados na sua Tese de Doutorado publicada pela Editora Revista dos Tribunais.

No encerramento, Camile Eltz de Lima enalteceu a importância dos temas tratados ao longo dia e da importância do IBCCRIM na formação e nos caminhos da política criminal que devem rumar para a efetivação de um devido processo penal democrático e de um sistema penal fundado na dignidade da pessoa humana.

Foi uma longa caminhada, que poderia ser exaustiva, mas – muito pelo contrário – foi enriquecedora em termos humanos e culturais. Congregar é andar junto e junto com amigos e amigas. A caminhada não é lembrada por suas dores e, sim, pelas lembranças das trocas. Poder caminhar presencialmente, lado-a-lado, novamente, é uma grande presente.

Vida longa ao IBCCRIM!

https://www.migalhas.com.br/depeso/374438/as-viagens-do-ibccrim

Vai ficar tudo bem

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