Artigo de autoria de Bruno Salles Ribeiro, publicado pelo jornal O Estado de São Paulo, em 30 de março de 2021
Na véspera de seu aniversário de 58 anos, Maria da Graça Meneghel participou de uma live, na qual defendeu que presidiários pudessem ser “usados” como cobaias em experiências farmacêuticas. Sintomático que a rainha dos baixinhos começa sua peroração com uma ressalva pessoal: “eu tenho um pensamento que pode parecer muito ruim para as pessoas, desumano”. De fato, não só pareceu, como é.
O princípio da dignidade da pessoa humana consagra a concepção de que o homem é um fim em si mesmo. E disso decorre que a vida humana jamais pode ser objetificada; jamais pode ser instrumentalizada para qualquer fim. A fala da apresentadora é desumana, na exata medida em que infringe esse corolário supremo de nossa civilização.
Após sua fala, a apresentadora passou a sofrer duras críticas em redes sociais e em outros meios de comunicação. Nos comentários mais frequentes, foi associada ao nazismo e às cruéis práticas do famigerado médico Joseph Mengele, que conduziu as mais dantescas experiências com seres humanos cativos nos campos de concentração.
Entretanto, Xuxa não é nazista e sua fala não advém de qualquer aquiescência àquela ideologia. Sua fala emerge apenas da ignorância e de uma mentalidade amplamente difundida na sociedade brasileira pelos anos e anos de exploração midiática dos dramas relativos ao direito criminal.
Na concepção mal refletida da apresentadora – pela qual imediatamente se desculpou horas depois – dentro dos muros dos presídios existiriam monstros lá deixados para morrer por “sessenta, cinquenta anos”. E que para a atenuação de seus imperdoáveis pecados, poderiam ser forçados a emprestar seus corpos para um projeto maior, que poderia beneficiar toda sociedade. Digno de nota, que mencionada fala tenha se dado em um contexto em que a apresentadora denunciava os experimentos cruéis com animais. Nesse sentido, a crueldade com humanos seria uma alternativa simples à crueldade com animais.
Naturalmente, a apresentadora ignora que nosso ordenamento jurídico não permite que uma pessoa permaneça encarcerada por cinquenta ou sessenta anos. Ignora que metade de nossa população carcerária é composta por presos provisórios, jovens de baixa escolaridade, majoritariamente negros e pardos. E que, também majoritariamente, é composta por acusados ou condenados por crimes contra o patrimônio ou relacionados ao tráfico de entorpecentes. Nesse último grupo, a maioria são pequenos traficantes, comerciantes de produtos vedados pelo proibicionismo já abandonado por muitos países que tiveram na guerra às drogas sua principal bandeira. E, certamente, ignora que as acusações de homicídio representam cerca de apenas 10% das imputações aos integrantes de nossa massa carcerária.
Portanto, por mais que existam pessoas que, efetivamente, cometeram atos hediondos, o fato é que nosso sistema carcerário – esse estado de coisas inconstitucionais – longe de materializar em um coletivo de monstros predadores da vida humana, reúne, sobretudo, pessoas excluídas do nosso sistema capitalista de produção. Nosso sistema carcerário é hoje um mecanismo cruel, estruturalmente utilizado para lidar com os excedentes de produção social, oriundos de uma abolição escravista incompleta e de uma desigualdade social abissal.
Mas esses conceitos são raramente compreendidos pela sociedade. O que se incute, há anos, na mentalidade nacional, é que acusados de crimes são párias da sociedade. Dos programas sensacionalistas policiais às novelas e seriados, a indústria do jornalismo e do entretenimento diariamente bombardeiam a população com mensagens que sedimentam concepções deturpadas como a da apresentadora em sua live. Uma concepção disforme e sem contornos definidos, uma imagem da condensação do mal, sem rosto, sem história, sem humanidade, mas, certamente, com uma cor predominante.
Anos atrás, enquanto eu conduzia uma aula para presidiários, dentro de um presídio da capital, ouvi de um preso, ali trajado com suas calças caqui, camiseta branca e sandálias havaianas, que bandido bom é bandido morto. Ainda me recordo da estupefação que suas palavras causaram em mim. Absorto, eu olhava para ele, refletindo que aquela imagem disforme da encarnação do mal também existia na mentalidade dos próprios apenados. Claro que, para aquele rapaz, ele não era o “bandido”. O bandido deveria ser outro. Não ele, nem seus colegas. Mas algum monstro que se escondia entre aqueles muros entre os quais era cativo, mas que ainda não tivera a oportunidade de encontrar. O monstro podia não habitar aquele lugar, mas essa mentalidade cruel e atrasada, essa com certeza também se depositava ali.
De tal sorte, por mais que os métodos defendidos pela apresentadora se assemelhem bastante aos utilizados na Alemanha da década de 30 e 40, é certo que não há em suas palavras traços da ideologia nazista. Entretanto, há uma impregnada mentalidade preconceituosa, deletéria, vil e ignorante que, infelizmente permeia nossa sociedade.
Conquanto a ideologia nazista – que hoje se insinua até mesmo em próceres do governo – pode e deve ser duramente combatida, a mentalidade não. A mentalidade não pode ser combatida, ela só pode ser modificada. Pela educação, pelo pensamento científico e pela razão.
Xuxa não é nazista e seus pedidos de desculpas devem ser aceitos. E que seu erro se torne uma oportunidade de reflexão e de ação para a mudança dessas ideias pré-concebidas e enraizadas na mentalidade nacional.
Pessoas nunca deixarão de ser pessoas, não importa de onde venham, o que pensem ou que façam. Pessoas não podem ser tratadas como coisas. Pessoas são a expressão da vida humana e a vida humana é o bem mais precioso de nossa sociedade. Que a rainha dos baixinhos passe a compreender isso de agora em diante. E que do seu privilegiado espaço de fala, possa ensinar também essa lição e, assim, contribuir para a evolução de nossa sociedade.
https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/xuxa-nao-e-nazista/