Só um jogo

O resultado do jogo não foi numérico, mas sim sentimental.

No longa-metragem “O ano em que meus pais saíram de férias” conta-se a história do menino Mauro, que, durante o regime militar, acaba sob os cuidados de um estranho após seus pais serem presos por “comportamento subversivo”. Quem lê essa pequena sinopse pode pensar que o filme trata apenas de política. Mas quem assistiu ao filme sabe muito bem que ele trata é de futebol.

Inspirado na própria história do diretor Cao Hamburguer, o filme se passa em 1970, ano da conquista do Tricampeonato Mundial de Futebol pelo Brasil. Tendo como cenário a Copa do Mundo, o filme mostra com toda a sutileza do diretor o significado cultural que esse esporte tem na sociedade.

Em um momento marcante do filme, um grupo de pessoas consideradas subversivas pelo regime militar comemora um gol da Seleção da Tchecoslováquia, em apoio ao regime socialista. Algumas cenas depois, esse mesmo grupo de pessoas comemora com muito mais intensidade e vibração um gol do Brasil, comungando com o todo o país a conquista da Seleção Canarinho.

Não se ignora o papel que o futebol tem no crescimento dos movimentos ufanistas nacionais. Também não se descura para o fato de que foi sim usado como o ópio do povo. Nada mais natural. Como qualquer fenômeno cultural, é ele inexoravelmente político. E como a democracia corintiana viria a escancarar anos depois, é político e subversivo.

Talvez por isso, uma pelada de final de semana tenha despertado tanto interesse e curiosidade. Talvez seja mesmo por isso que a imprensa tenha especulado, imaginado e divulgado tantas “notícias” sobre uma reunião entre amigos.

Não se ignora que em um dos times havia Chico Buarque, cantor, compositor, escritor, dramaturgo, patrimônio nacional e, acima de tudo, jogador emblemático do ainda mais emblemático Polytheama. Mas a verdade é que o Chico joga bola há muito tempo, no mesmo lugar, com as mesmas pessoas. E ninguém parece incomodá-lo, na maioria das vezes.

Chico Buarque é um ser político, dos mais importantes para o Brasil. É e sempre foi um subversivo. Mas do outro lado, na equipe adversária, é onde estava mesmo a subversão. Um time composto em sua maioria por advogados. Alguns que se conheciam a muito tempo, outros que jamais haviam se visto antes da partida. E desde sempre – e com significativo relevo nos dias atuais – a advocacia é uma das atividades mais subversivas que já existiu.

Ainda piores do que advogados, se reuniam naquele time uma profusão de advogados criminalistas. Se o advogado é um ser subversivo, o advogado criminalista é visto como a própria subversão. Aquela criatura maldita, cuja existência só é compreendida, pela maioria da sociedade, quando diante de uma acusação.

É certo que não eram só advogados. Havia ali também economistas, estudantes e jornalistas. Mas aquele time só existia por um motivo pretérito; pela comum preocupação com as prerrogativas da advocacia e pelos rumos dos Estado de Direito.

A modernidade é curiosa e de fina ironia. Se antes a pelada de domingo era um evento agregador, dessa vez foi a tecnologia que aglutinou tantas pessoas, de tantas partes do país. Um grupo de WhatsApp, no qual diversas pessoas – em sua maioria advogadas e advogados – passaram a discutir sobre variados temas, sobre as principais notícias e, inclusive, sobre futebol.

A ágora pode ser virtual. Mas, ainda assim, rumores surgiam sobre a reunião dos advogados em um grupo de discussões. Nada mais subversivo. Cidadãos, advogados, advogados criminalistas, se reunindo novamente depois de um sono letárgico em que suas prerrogativas foram vilipendiadas. As prerrogativas, que são do advogado, mas que servem acima de tudo ao cliente, que é quem é protegido, em última instância, contra violações ilegais. Um nível de subversão quase intolerável em uma sociedade que se acostumou ter suas costas chicoteadas sem ousar olhar nos olhos de seus algozes.

A imprensa chegou a noticiar que a partir daquele fórum seria fundado um instituto. Depois disse que esse instituto não seria mais fundado. Mas descobriu o jogo de futebol. Talvez fosse a falta de escândalos da semana. Talvez fosse o nível de subversão. A partida estava anunciada.

Nos bastidores, os juristas-jogadores estavam compenetrados. Espalhados pelos quatro cantos do país organizavam treinos para definir a escalação e a tática. Muitas vezes se ouvia a frase: “há mais de 10 anos não jogo futebol”. O cheiro de cânfora dos inúmeros aerossóis utilizados aumentava a cada treino. Contrações, estiramentos, luxações, hematomas eram compartilhados como testemunho do desafio e da superação.

Enfrentar o Polytheama fez esses amigos esquecerem um pouco a quadra sombria pelo qual atravessa o país. Como o gol do Brasil, comemorado pelos subversivos no filme de Cao Hambúrguer. Tão preocupados com o futuro das garantias fundamentais esquecidas em prol de um Tribunal Popular, agora eram eles que se permitiam descuidar desses assuntos tão caros.

Eles rejuvenesciam. A cada treino corriam e se esforçavam mais. Ativos defensores dos preceitos constitucionais, agora saiam da aposentadoria futebolística e se alegravam a cada contusão. E rejuvenesciam diante da perspectiva de enfrentar um ídolo. E com o rejuvenescimento, até mesmo esses impassíveis e destemidos professores e advogados experimentaram a insegurança quando os rumores maldosos quase cancelaram a partida.

Mas a partida ocorreu. Dos quatro cantos do país, esses amigos rumaram ao Rio de Janeiro para encontrar um dos quatro sábados chuvosos do ano na Cidade Maravilhosa. De lá um ônibus até o local da partida. Camisetas prontas, definições táticas preparadas, só a distância separava aqueles cada vez mais jovens senhores da tão esperada partida.

Chegando ao local, Chico Buarque, ele mesmo, esperava na porta no ônibus, cumprimentando cada um dos presentes e saudando a empolgação com a qual ali se apresentavam. Algumas fotos e fim do “homem cordial”. Todos ao vestiário para se prepararem para a partida.

A partida se iniciou e transcorreu em baixo de chuva. Como uma alegoria dos momentos recentes, em que qualquer felicidade parece vir com seus condicionantes. Talvez, por outro lado, fosse apenas uma metáfora de que as adversidades – e quantas foram – não poderiam minar o desejo de união.

O placar a imprensa noticiou. Mas o resultado do jogo não foi numérico, mas sim sentimental. Em dado momento da partida, olhei ao redor e vi Chico Buarque procurando se posicionar no ataque. A bola saiu e tive aquele momento sublime de contemplação, que algumas vezes acontecem em nossa vida.

Gostaria de narrar o nome de cada um dos colegas de time que se encontravam em campo e fora dele. Gostaria também de delinear cada um de nossos adversários. Gostaria de pontuar cada uma das mulheres que estavam ali na lateral e que foram as maiores responsáveis por tudo aquilo acontecer: que logo estejam vocês e campo e nós na torcida. Mas cabe aqui apenas lembrar do que senti naquele. Senti mesmo a subversão.

A subversão daquela partida estar acontecendo. A subversão daquelas pessoas ousarem se encontrar. A subversão de termos formado um time de futebol. A subversão de termos nos encontrado. A subversão de defender a democracia e o Estado de Direito. A subversão de defender as prerrogativas dos advogados. A subversão de termos sidos tachados e rotulados e ainda assim, termos mantido nossos ideais.

Aquela subversão que invadia as quatro linhas, que empolgava a torcida e que, no fundo, era apenas mais uma subversão daqueles que sempre foram tachados e rotulados como inimigos da sociedade e inimigos da justiça. Sabemos que não somos. Sabemos que justiça é diferente de arbítrio, desse o qual somos ferrenhos inimigos.

O jogo não tinha árbitro ou juiz. E assim, aquela partida terminou, mas jamais se ouviu o apito final.

Este artigo foi originalmente publicado em https://www.migalhas.com.br/depeso/269617/so-um-jogo por Bruno Salles Ribeiro

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