Se guiar pela voz das ruas e pelo clamor popular é como correr atrás do arco-íris, como se fosse um pórtico divino para um mundo maravilhoso. Mas a única forma de evolução está em encarar que ali só há a luz decomposta pela água. E que no texto constitucional estão cristalizadas as garantias fundamentais oriundas dos séculos de evolução das ciências criminais.
No poema “Lâmia” (1820) de John Keats, há uma reação às então recentes divulgações dos resultados do experimento científico que permitiu a observação da decomposição da luz por meio do prisma, conduzido por uma das maiores mentes da evolução científica ocidental, Sir. Isaac Newton. O poeta inglês acusava a fria ciência de destruir a beleza e o encantamento, ao substituir o mistério pelo por regras e métodos. Em tom de crítica, o poeta acusava a ciência de desvendar o arco-íris.
Em 1998, o biólogo evolutivo Richard Dawkins publicou o livro “Desvendando o Arco-Íris: ciência, ilusão e encantamento”, no qual, partindo do argumento de Keats e de outros poetas como Edgar Allan Poe (“To Science”), procurou mostrar que o levantar das cortinas do misticismo de forma alguma leva à gélida morte da poesia. Pelo contrário, a revelação dos fatos pela ciência conduz à percepção de realidades muito mais arrebatadoras do que o misticismo da ignorância.
Em seu livro, o biólogo argumenta que a decomposição da luz não destruiu o arco-íris; a decomposição da luz nos faz perceber que o arco-íris é resultado do fracionamento da luz em bilhões de gotículas de água suspensas captadas pelos olhos do receptor, revelando assim que, por traz dos “frios e aritméticos” teoremas físicos repousa a constatação de que cada arco-íris é individual e particular das lentes daquele que o observa. Ele existe em nossos olhos.
A compreensão de que o arco-íris não é uma obra de qualquer providência sobrenatural não lhe mina sua especiosidade inata. Mas a evolução científica é o que permitiu criação de novas tecnologias e a modernização da sociedade. A ciência e a razão são as molas propulsoras da sociedade rumo ao futuro. A sua negação, o apego ao obscurantismo, à fé nas sedutoras ilusões do simplismo é o que forma a vanguarda do atraso de um povo.
O julgamento das ADCs 43, 44 e 54, pelo Supremo Tribunal Federal, é sobretudo um embate entre a ciência e a crença, entre as evidências empíricas e os lugares comuns, entre a técnica e o arremedo.
Sob o prisma jurídico, o texto constitucional é o mais límpido possível: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Toda a ancoragem dogmática do sistema penal-constitucional previne a interpretação extensiva que restrinja direitos fundamentais, que imponha gravames na liberdade do indivíduo, que prejudique as garantias do réu. Nenhum cientista jurídico de respeito teve coragem de vir a público defender o contrário.
A fragilidade da argumentação jurídica faz com que os defensores da prisão em segunda instância levem a discussão para uma vertente teleológica ou consequencialista. Os altos índices de criminalidade, a sensação de impunidade, a necessidade de se combater a corrupção, tudo isso justificaria o vilipêndio ao texto constitucional. Como se houvesse um fim maior a ser alcançado que justificasse a exceção. E como se a antecipação da prisão conduzisse a esse fim.
É necessário, no entanto, que, no julgamento pela mais elevada corte de justiça do país, se faça um apelo à razão. Para que se recorra a toda a produção científica séria das ciências criminais, que nos mostra há quase um século que o sistema penitenciário pouco tem a ver com as políticas de segurança pública. Que o aumento do número de prisões não leva à diminuição da criminalidade e pouco tem efeito no combate à corrupção. Que antecipar a pena privativa de liberdade, é colocar no cárcere pessoas que ainda podem ser inocentadas ou ter o direito de ter reconhecidos outros direitos que evitariam a prisão.
A negação da ciência tem sua mais famosa expressão, hodiernamente, no bizarro movimento terraplanista, que ignorando todas as provas astronômicas, sustenta que a terra plana, somente porque assim parece a seus limitados sentidos. A defesa da prisão em segunda instância como modo de controle da criminalidade, nesse sentido, representa um verdadeiro terraplanismo jurídico-penal.
Se guiar pela voz das ruas e pelo clamor popular é como correr atrás do arco-íris, como se fosse um pórtico divino para um mundo maravilhoso. Mas a única forma de evolução está em encarar que ali só há a luz decomposta pela água. E que no texto constitucional estão cristalizadas as garantias fundamentais oriundas dos séculos de evolução das ciências criminais.
Essa é a única forma do Supremo Tribunal Federal conduzir o Brasil para o futuro: pela razão, pela ciência, pela regra, pela lei.
Este artigo foi originalmente publicado em https://www.migalhas.com.br/depeso/313642/presuncao-de-inocencia–um-apelo-a-razao por Bruno Salles Ribeiro.