A justiça penal consensual tem ganhado cada vez mais espaço no Brasil. Embora ainda sejam necessárias reflexões e críticas à forma de condução de negociações no âmbito penal, os acordos que foram construídos ao longo dos anos demonstraram um posicionamento do legislador em prol do desencarceramento e desafogamento do judiciário. Paradoxalmente, após a implementação do Acordo de Não Persecução Penal, última ferramenta de justiça negocial adicionada ao sistema normativo, verifica-se que o Congresso Nacional tem discutido e votado projetos de leis que visam ao enrijecimento de penas e acabam por inviabilizar ou dificultar a aplicação da justiça negocial.
O primeiro passo para a implementação da justiça penal negocial no país se deu com a Lei 9.099/1995, que introduziu ao sistema normativo pátrio a composição civil, transação penal e a suspensão condicional do processo. Esses mecanismos surgem com a finalidade de proporcionar economia processual e redução de custos judiciais, uma vez que, aceito o benefício, evita-se o processo criminal por crimes de menor gravidade, mediante o cumprimento de determinadas medidas.1
Posteriormente, com a Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013), foi introduzido no Brasil o acordo de colaboração, instrumento que serviu como um dos principais meios de produção de provas na famigerada Operação Lava-Jato. Ao longo da operação, os acordos proporcionaram à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal o conhecimento acerca de inúmeros fatos potencialmente criminosos, o que subsidiou diversas linhas de investigação e culminou no oferecimento de denúncia e condenação de centenas de pessoas.
Foi, também, ao longo da Operação Lava-Jato, que o Conselho Nacional do Ministério Público introduziu no Brasil, por meio da Resolução 181/2017, o Acordo de Não Persecução Penal – acordo inspirado no modelo americano denominado Non-Prosecution Agreement. A referida resolução foi amplamente criticada quanto à sua constitucionalidade, especialmente no que toca ao atropelamento do processo legislativo para a criação de acordos de natureza penal.2 Apenas em 2020, com a entrada em vigor da Lei 13.964/2019, que o Acordo de Não Persecução Penal foi efetivamente introduzido no Código de Processo Penal e começou a ser amplamente utilizado.
O Acordo de Não Persecução Penal constitui um forte marco no sistema de justiça negocial, uma vez que permitiu que pessoas sob investigação por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça cujas penas mínimas cominadas sejam inferiores a quatro anos se utilizassem da justiça negocial penal a fim de evitar as agruras de um processo criminal. Devido à sua ampla abrangência, investigados por crimes como corrupção, estelionato, porte ilegal de armas, entre outros, passaram a ter a possibilidade de aderir à justiça negocial. Em contrapartida, o Estado propicia às vítimas agilidade na reparação do dano, um dos requisitos para a celebração do ANPP, além de promover a otimização da justiça penal, com o rápido encerramento de processos que, outrora, tramitariam durante vários anos.
As iniciativas acima mencionadas e a experiência internacional demonstram que a criação de instrumentos de negociação resulta em uma racionalização da justiça penal, com a rápida resolução de casos simples, reservando-se o peso do processo criminal aos crimes de maior gravidade. Essa ideia construída a duras penas nas últimas décadas, no entanto, não se reflete na prática legislativa atual, cujas propostas normativas caminham no sentido de enrijecer as penas abstratas cominadas aos delitos, levando, na prática, à própria negação da justiça penal negocial.
Não é novidade que a criação de novos tipos penais e o enrijecimento das penas cominadas aos já existentes não resolve o problema da criminalidade a longo prazo.3 Com efeito, o endurecimento do rigor penal nada mais é que um paliativo, trazendo, quando muito, tímidos e momentâneos reflexos nos índices de criminalidade. Ainda assim, uma breve análise nos projetos de lei em matéria penal em tramitação no Congresso Nacional demonstra que o aumento das penas abstratas e a formulação de novos crimes ainda são amplamente utilizados como solução milagrosa ao combate à criminalidade.
Além de contribuir com a inflação legislativa de normas penais, os novos patamares de pena propostos por nossos legisladores acabam por inviabilizar o oferecimento e aplicação dos institutos de justiça penal negocial. Prova disso foi a recente publicação da Lei 14.133, de 1º de abril de 2021, que transportou ao Código Penal os delitos anteriormente previstos na Lei de Licitações (Lei 8.666/1993), além de criar um novo tipo penal e aumentar as penas daqueles já existentes.
O projeto de lei que deu ensejo à nova Lei de Licitações já tramitava desde 1995 (Projeto de Lei 1292/95) na Câmara dos Deputados. Após mais de 117 emendas, em 04 de junho de 2019, foi apresentado no Plenário da Câmara de Deputados um parecer com uma proposta de emenda global ao projeto, cuja parte penal se assemelha à redação final aprovada pelo Congresso Nacional.
Uma das principais influências ao enrijecimento das penas hoje em vigor foi a cartilha “NovasMedidas Contra a Corrupção” elaborada pelo projeto Unidos Contra a Corrupção, Transparência Internacional e pela Fundação Getúlio Vargas. Entre os colaboradores da Cartilha estavam diversos juristas, membros da Procuradoria Geral da República e então membros da força-tarefa da Operação Lava-Jato, que fundamentam o aumento das penas dos crimes licitatórios na suposta brandura da lei antiga em que “as penas aplicadas em concreto, até quatro anos, costumam ser cumpridas em regime aberto e/ ou, quando muito, ensejam a aplicação de penas alternativas à prisão, a exemplo da prestação de serviços à comunidade ou da multa”. Embora não haja menção explícita à justiça negocial, vislumbra-se uma crítica ao que, muitas vezes, são os seus efeitos (multa e prestação de serviços à comunidade).
Não se pode descartar, também, que diversos dos colaboradores do documento atuavam na Operação Lava-Jato, que tinha como forte linha de operação a celebração de acordos de colaboração e acordos de não persecução penal – nos termos da resolução 181/2017 do CNMP – com pessoas ligadas a empresas estatais e empresas privadas que participavam de processos licitatórios. Caso as penas para os crimes de licitação fossem elevadas ao patamar mínimo de 4 anos, seria possível realizar acordos de colaboração, nos termos da Lei 12.850/2013, com aqueles que participassem de organizações criminosas envolvendo crimes dessa natureza. Nessa mesma monta, restaria inviabilizada a realização de Acordos de Não Persecução Penal e outros métodos de justiça negocial. Assim, o enrijecimento de pena, conforme proposto pela cartilha, restringiria ao réu a celebração tão somente de acordo de colaboração, vetando as demais formas de justiça negocial e possibilitando o aumento do escopo das grandes operações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal.
Embora o contexto político tenha mudado desde a proposta, foi a influência da cartilha das “Novas Medidas Contra a Corrupção” que deu ensejo à atual Lei de Licitações. Entre as alterações trazidas pela nova lei está a introdução de doze novos artigos no Código Penal, com a criação do delito de “omissão grave de dado ou de informação por projetista” previsto no artigo 337-O, cuja pena máxima de três anos obsta a celebração de transação penal. A lei ainda exaspera a pena cominada em oito delitos, mantendo-se a reprimenda prevista anteriormente em apenas duas hipóteses. Na prática, os novos patamares de pena impedem a celebração de acordo de não persecução penal, antes possível, em seis diferentes crimes. Também se impede a celebração de transação penal em quatro hipóteses em que antes cabia a aplicação do instituto.
O enrijecimento arbitrário de penas e o afastamento dos institutos da justiça negocial também fica evidente na alteração promovida pela Lei 14.064/2020, que introduziu na Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998) nova qualificadora ao crime de maus tratos aos animais, quando este for praticado contra cães e gatos. Prevê-se para essa hipótese a pena mínima de dois anos e pena máxima de cinco anos de reclusão, obstando-se, a um só tempo, a celebração de transação penal e suspensão condicional do processo.
A tendência de negação aos institutos despenalizadores também se verifica na recentemente aprovada Lei 14.155/2021, que enrijeceu os crimes praticados por meios virtuais. O Projeto de Lei 4.554, de 2020, do Senado Federal, de autoria do Senador Izalci Lucas, foi o que deu ensejo à nova mudança legislativa. A justificação do projeto de lei apontou o número crescente de crimes cibernéticos no país, indicando como um dos problemas à possibilidade de aplicação de penas alternativas: “Líderes em segurança contra fraudes lamentam todo o esforço para combater esse tipo de crime enquanto a legislação considerar essa prática como um crime menor, cujas penas são muitas vezes substituídas por penas ‘alternativas’”. Assim, o projeto visou à aprovação de “meios mais rigorosos para punir esse tipo de crime que assola o país.”.
A lei foi promulgada com o objetivo de “tornar mais graves os crimes de violação de dispositivo informático, furto e estelionato cometidos de forma eletrônica ou pela internet”. Assim, impede a transação penal para o crime de invasão de dispositivo informático previsto no artigo 154-A, do Código Penal, e a suspensão condicional do processo e a transação penal para a hipótese prevista no artigo 154-A, §3º, do Código Penal. Por fim, cria qualificadoras para os crimes de furto e estelionato, atribuindo penas de quatro a oito anos de reclusão, impedindo, portanto, a celebração de qualquer tipo de acordo penal.
A superlotação de nossos estabelecimentos prisionais, os crescentes índices de criminalidade e a absoluta ineficiência da justiça criminal são fatores que levaram à criação dos primeiros instrumentos da Justiça Penal Negocial. Os esforços envidados em 1995, com a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais foram reforçados, em 2013, com a Lei de Organização Criminosa e, em 2019, com a Lei Anticrime, cada qual com a criação de um novo instituto, mas todos com um único intuito, otimizar a justiça penal.
As recentes alterações promovidas pela nova Lei de Licitações e pela Lei 14.064/2020 e pela Lei 14.155/2021, demonstram que o legislador ainda insiste no aumento de pena como solução para a criminalidade. Cria-se, portanto, um paradoxo do poder legislativo, que ora aprova e promove a justiça negocial, ora enrijece penas que a inviabilizam.
Este artigo foi originalmente publicado em https://www.ibccrim.org.br/noticias/exibir/8609 por Marco Antonio Chies Martins.