Reportagem de Jeniffer Mendonça, para a Ponte Jornalismo, que contou com a contribuição do sócio Bruno Salles Ribeiro
Um homem, Gabriel Dantas Pereira, 26, procurou policiais militares na Praça da Sé, centro da capital paulista, dizendo que havia participado do assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, ocorrida no Vale do Javari, no Amazonas, a milhares de quilômetros de distância. Antes de se perguntar por que um cidadão se entregaria tão longe, tão voluntariosamente, num lugar conhecido pela presença dos mais excêntricos populares como a Praça da Sé, ainda na manhã do dia 23 de junho a Polícia Civil de São Paulo já havia divulgado foto e vídeo do homem apresentando-o como o “quarto suspeito” das mortes, mesmo sem qualquer confirmação da Polícia Federal do Amazonas, que investiga o crime.
Em entrevista à Rádio Bandeirantes naquela manhã, o delegado Roberto Monteiro, da Seccional Centro, falou como se estivesse certo da presença de Gabriel na cena do crime. “Ele (Gabriel) estava junto na lancha voadora de onde foram disparados os tiros contra o ambientalista e o jornalista inglês, e depois ele ficou responsável por esconder os pertences das vítimas no meio da mata. Ele fugiu primeiro para Roraima e depois para São Paulo”.
Na coletiva convocada à tarde, disse de forma menos assertiva que “é uma versão que tem fundamento, ele realmente é de Manaus, ele relata com muita riqueza de detalhes o que ele fez durante o período em que foi até Atalaia do Norte”. Porém, nenhum jornalista teve permissão de fazer perguntas.
O depoimento de Gabriel foi colhido pela delegada do 2º DP (Bom Retiro) Maria Cecília Castro Dias, que também pediu a prisão temporária dele ao Tribunal de Justiça de São Paulo, que acabou encaminhando o caso para a comarca de Atalia do Norte, no Amazonas. Na coletiva, não proferiu nenhuma palavra. Quem tomou a frente para fazer declarações à imprensa foi Monteiro.
O delegado tem aparecido com frequência em reportagens por conta das incursões da Polícia Civil na região da Luz, conhecida de forma pejorativa de “Cracolândia”, como parte da Operação Caronte — batizada com o nome do personagem que, de acordo com com a mitologia grega, era o barqueiro que conduzia as almas para o mundo dos mortos mediante pagamento —, deflagrada em junho de 2021 e que ainda faz ações no centro da capital paulista. Nos vídeos e postagens em seu Instagram, menciona que dependentes químicos precisam de acolhimento e cuidado, mas já se referiu a eles como “mortos-vivos” e deu pouca importância a episódios de violência de agentes contra pessoas em situação de rua durante as fases da operação, como denunciou a Ponte e mencionou que a morte de Raimundo Donato Rodrigues Fonseca Júnior, que estava em situação de rua, tinha dependência química e foi baleado por policiais civis do Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos (Garra), foi uma “ação isolada”.
Assim como recompartilhou a foto de Gabriel com dados pessoais postada pelo apresentador do programa Cidade Alerta, da Record TV, Luiz Bacci, seu perfil no Facebook com mais de 18 mil seguidores também contém fotos de suspeitos, com divulgação de RG, que foram presos por tráfico de drogas durante a Operação Caronte. Delegado há 36 anos, já foi candidato pelo partido Solidariedade a vice-prefeito de Bariri, no interior paulista, nas eleições de 2016, município onde seu pai, Roberto Monteiro de Andrade, atuou como delegado nos anos 1960 e outros parentes ocuparam cargos do Executivo, como descreveu em seu site. Não se candidatou em nenhuma outra eleição, mas apoiou publicamente a campanha “Bolsodoria” no pleito de 2018.
O comportamento do jornalismo não foi melhor do que o da polícia. A Ponte foi o único veículo a apontar essas contradições e questionar sobre provas à Polícia Civil de São Paulo. Outros noticiaram a informação como se fosse um fato comprovado. “Quarto suspeito da morte de Bruno e Dom é preso em São Paulo”, soltou o R7. Na Folha de S. Paulo, a chamada era “Polícia de SP prende outro suspeito do assassinato de Bruno e Dom”. O Nexo disse que “4º suspeito de matar Dom e Bruno se entrega à polícia em SP”. O jornal Estado de São Paulo seguiu na mesma toada: “Bruno e Dom: quarto suspeito de participar do assassinato se entrega e é preso em SP”. O G1 foi mais cauteloso e se ateve aos fatos: “Homem se apresenta à polícia de SP dizendo que participou dos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips no AM”. Vários desses veículos expuseram fotos e vídeos do “suspeito”, e a Band News ainda publicou uma foto com os dados pessoais dele, incluindo CPF.
Vendendo fumaça
Falsas confissões voluntárias são um fenômeno conhecido pelas polícias de todo o mundo que trabalham com crimes que ganham destaque na mídia. Nos Estados Unidos, em 1932, cerca de 250 pessoas confessaram que haviam sequestrado e matado o bebê do aviador Charles Lindbergh. A morte da jovem Elizabeth Short, conhecida como Dália Negra, em 1947, que inspirou filmes, séries, livros e quadrinhos, levou a cerca de 500 falsas confissões voluntárias ao longo de anos. Diferente do que a polícia de São Paulo fez na semana passada, nesses dois casos as polícias dos EUA esperaram obter provas reais antes de sair divulgando que haviam capturado um assassino.
Na época dos assassinatos de Nicole Brown Simpson, e do amigo dela, Ron Goldman, em 1992, a polícia norte-americana recebeu diversas ligações sobre pessoas que diziam ter visto, ouvido e até se casado com o suposto criminoso, de acordo com reportagem de 1996 do Los Angeles Times. O ex-jogador de futebol americano O.J. Simpson, ex-marido de Nicole, foi acusado e depois absolvido por um júri popular pelos crimes em 1995 e, tanto o caso como o julgamento foram muito midiáticos.
“Tem casos de homicidas em série ou coisas do tipo nos EUA e a polícia recebe milhares de ligações de gente dizendo que viu alguma coisa, que foi ele que fez, e 99% era mentira”, aponta o analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) Guaracy Mingardi. “O grande trabalho é separar o joio do trigo e, se uma pessoa se apresentou [para confessar], tem que por gente em campo para ver, perguntar para gente do Amazonas. E se ele disse essas informações, vamos perguntar como ele poderia saber de tal coisa que não saiu no jornal, porque se saiu no jornal qualquer um pode chegar lá [na delegacia] e falar isso”, explica. “Agora, se ele tem algum detalhe a mais que não saiu na imprensa, aí você se comunica com quem está investigando para ver se é verdade. Se tem alguma comprovação, apresenta [a pessoa] para a Justiça, antes disso, não se fala sobre porque pode gerar o que a gente chama na polícia de vender fumaça, que só atrapalha a investigação.”
Esse exemplo citado por Mingardi é uma estratégia usada pela polícia dos EUA: não divulgar determinados detalhes (chamados de “chaves”) sobre um crime ao grande público. Assim, no caso de pessoas que procuram a polícia dizendo ter cometido um crime, os policiais só vão começar a levar a história a sério e considerá-la que “parece verossímil” se ela mencionar detalhes reais que não foram divulgados pela imprensa.
Quando a Ponte perguntou à delegada Vanesa Guimarães, que faz a comunicação da Seccional Centro, sobre provas que Gabriel teria apresentado, ela respondeu: “Ele apresentou a oitiva [depoimento] dele que é um meio de prova, óbvio, ele estava cheio de papéis de todo o trajeto que ele percorreu e tem a oitiva do caminhoneiro, que inclusive foi colhida com a nossa intervenção na Polícia Civil de Goiás, e essa testemunha confirmou toda a versão dele, de que trouxe ele de caminhão, de que deu carona para ele”. O depoimento do caminhoneiro à Polícia Civil de Goiás, que confirmou ter dado a carona a Gabriel, também foi divulgado.
“É a mesma coisa que eu falar para você que eu participei do assassinato do presidente John Kennedy e, depois do assassinato, eu me hospedei num hotel tal e te dou o recibo do hotel tal. Isso confirma que eu participei do assassinato ou tem alguma relação?”, questiona o advogado Bruno Salles, sócio da Cavalcanti, Sion e Salles Advogados e primeiro secretário da direção do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim). “Parece que a polícia queria dar um furo antes da imprensa”. Furo, no jargão jornalístico, é quando um veículo ou jornalista publica uma informação que os concorrentes não tinham, antes de todo mundo.
Salles aponta uma “subversão do processo penal” quando, assim que é colhido o depoimento, o primeiro ato da Polícia Civil foi divulgar para a imprensa, depois convocar uma coletiva e avisar que pediu a prisão temporária de Gabriel antes de uma “verificação aprofundada”. “Nessa sociedade do espetáculo que a gente está vivendo, nessa sociedade dos vídeos de notoriedade que geram poder e dinheiro, é só a gente ver os casos do Gabriel Monteiro e do Delegado Da Cunha monetizando operações, contamina as instituições”, pontua. “Na Alemanha, por exemplo, você não pode sequer filmar um preso ou divulgar informações sobre ele, e aqui no Brasil esse é um dos produtos mais explorados pela polícia.”
Além disso, o advogado explica que uma confissão não gera uma prisão imediata nem uma condenação. “Se a pessoa confessar, a polícia tem obrigação de investigar o delito para que tenha provas que mostrem que aquela confissão é algo corroborado por outras provas dos autos. Essa é uma regra do Código de Processo Penal”, destaca.
A auto-acusação falsa também é um crime previsto no artigo 341 do Código Penal, com pena de detenção, de três meses a dois anos, ou multa. “A auto-acusação falsa ser um crime tem duas razões: pela pessoa querer atrapalhar uma investigação ou proteger alguém que realmente cometeu um crime e impedir de fato a polícia de chegar à real pessoa que cometeu o crime. Idealmente, para a administração da justiça, o que importa não é prender alguém, o que importa é prender a pessoa que realmente cometeu o crime”, pondera. “O porquê a pessoa está fazendo isso [auto-acusação] também é algo que tem que ser investigado, esse processo penal publicizado antes de se ter evidências fortes, provas além de qualquer dúvida razoável, você incorre em uma situação bastante temerária”.
Os especialistas apontam que, se uma pessoa diz que quer confessar algum crime, ela deve ser levada a uma autoridade de Polícia Judiciária, que pode ser a Polícia Civil ou Polícia Federal. Ela não é presa, é encaminhada a uma delegacia. O(a) delegado(a) colhe o depoimento dessa pessoa e passa a verificar essas informações, podendo abrir um inquérito se for de competência dele, ou encaminhando a quem tem competência (no caso, a Polícia Federal do Amazonas).
“Com o depoimento, o delegado inicia uma investigação e vê elementos que corroborem. Dar uma coletiva depois que se tem só um depoimento é como encerrar a investigação”, critica Bruno Salles. “Outra coisa é ver se, diante das evidências, se existem requisitos para uma prisão cautelar, uma prisão preventiva, em que a lei prevê provas de materialidade e indícios de autoria. Você não pode prender uma pessoa com uma simples confissão porque nunca vai ser prova por si só. Se a pessoa chega lá [na delegacia], confessa o crime e mostra uma gravação dela matando alguém, é diferente, tem uma prova. Se apresenta a arma do crime, diz onde está o corpo, aí tem uma série de outros elementos que mostram que a pessoa poderia ter participado de um delito”, explica.
No depoimento obtido pela reportagem, Gabriel relatou que a morte de Bruno e Dom ocorreu no Rio Madeira, o maior afluente do rio Solimões, que nasce na Bolívia, entra em Rondônia, abrange a parte sul do Amazonas e tem a foz na parte central do estado, a mais de 1.200 km, em linha reta, do Rio Itacoaí, onde Bruno e Dom desapareceram. Ele ainda afirmou que os assassinatos aconteceram na comunidade Santa Isabel, mas no Amazonas não existe nenhuma “Santa Isabel” na região do Vale do Javari — talvez se referisse ao município de Santa Isabel do Rio Negro, no noroeste do estado, distante 1.000 km em linha reta da Terra Indígena Vale do Javari. Ou se confundiu com a comunidade São Rafael, por onde as vítimas passaram.
Outro erro geográfico do depoimento de Gabriel é sua rota de fuga. Após o crime, ele teria viajado a Santarém, no Pará, distante 1.800 km em linha reta do Vale do Javari, sem identificar a rota tortuosa que teria que seguir para chegar. De lá, teria voltado ao oeste para Manaus, capital do Amazonas, seguido para Rondonópolis, no Mato Grosso, e só então partido de ônibus para São Paulo. É um caminho extremamente difícil, longo, demorado e caro de ser realizado, além de contraintuitivo — ainda mais para terminar se entregando na Praça da Sé.
Além do passeio, Gabriel ainda se contradisse em vídeos distribuídos à imprensa, onde fala que teria espalhado pertences de Bruno e Dom pela mata (os objetos foram encontrados afundados no rio), e que teria ido à região onde ocorreu o crime fugindo do Comando Vermelho, que, segundo reportagens, é uma das facções que disputam justamente o controle territorial no Vale do Javari.
Além disso, Gabriel relatou que conheceu um dos suspeitos do duplo homicídio, Amarildo da Costa Oliveira, o Pelado, havia uma semana e que ele teria lhe chamado para pilotar a embarcação que estavam quando bebiam em um bar, apesar de a investigação da Polícia Federal apontar que o crime teria sido premeditado por Pelado em conjunto com sua família em virtude da atuação de Bruno na região da Terra Indígena (TI) do Vale do Javari. Reportagem do Projeto Tim Lopes, da Abraji, apontou que, por meio de denúncias dos indígenas, “Bruno Pereira teria identificado o envolvimento de um secretário municipal e de ao menos três servidores nomeados pelo prefeito [de Atalaia do Norte] na invasão da TI para pesca e caça predatórias”, um deles parente de Pelado.
No depoimento de Gabriel, ele ainda se confunde sobre quem seria o jornalista, descrito como “gringo”, e Bruno, e que a motivação de Pelado seria que o “gringo” teria “mexido com a sua mulher” e o outro “morreu de graça para não incriminá-lo”. Gabriel também diz que decidiu confessar o crime por estar com “sentimento de culpa” e por estar em situação de rua em São Paulo.
Um dia depois, a assessoria da Polícia Federal do Amazonas encaminhou nota declarando que a Justiça da Comarca de Atalaia do Norte havia negado o pedido de prisão temporária de Gabriel. Ele chegou a ser levado à Polícia Federal de São Paulo para prestar depoimento, “mas optou por exercer seu direito constitucional de permanecer calado”. Depois, foi liberado “tendo em vista que não há indícios de ter participado dos crimes ora em apuração, já que apresentou versão pouco crível e desconexa com os fatos até o momento apurados”.
A reportagem procurou o Tribunal de Justiça do Amazonas para questionar sobre o pedido negado. A assessoria disse que o processo tramita em segredo de justiça, informando apenas que “ao analisar os autos, o representante do Ministério Público Estadual na Comarca opinou contrário ao pedido da autoridade policial” e a juíza Jacinta Silva dos Santos, titular da Comarca de Atalaia do Norte, “decidiu pelo indeferimento do pedido por não estarem atendidos os requisitos legais exigidos para a decretação de prisão temporária”.
Nem a PF nem o MP deram entrevista para a Ponte. Quando saiu a nota do dia 24 de junho, a delegada Vanesa Guimarães disse que a atuação da Polícia Civil de São Paulo em divulgar o caso não foi prematura. “A gente tem que ter o nosso papel e qual era o papel da Polícia Civil? O cara vem, se apresenta, diz que matou duas pessoas [no depoimento consta que pilotou o barco]. O nosso papel é mantê-lo ali até isso ser apurado”, declarou. “Ele foi entregue à Polícia Federal porque o inquérito é da Federal porque, se não, estaria na estadual aguardando a apuração da versão dele. É assim que funciona, ainda mais num inquérito complexo como esse em que os fatos aconteceram em Manaus. Não dá para, em algumas horas, definir se a versão dele é verdadeira ou não. Eu não quero julgar nada, mas acho que a versão dele tem que ser muito bem apurada, muito bem apurada. É prematuro descartar totalmente porque tem que se entender por que esse homem aparece do nada, sem sinal nenhum de deficiência mental, e se declara autor de um crime gravíssimo de repercussão internacional?”.