Eutanásia e ortotanásia – perspectivas atuais no ordenamento jurídico nacional

Fala-se em eutanásia pura quando se deixa de proceder às medidas terapêuticas que evitem prolongar a vida do sujeito, passando-se a ministrar meios lenitivos que aliviem ou diminuam a sua dor, mas que não iniciem ou acelerem, entretanto, processo do qual advenha a sua morte. A eutanásia indireta guarda muita semelhança com a pura, diferenciando-se, contudo, pelo fato de que as medidas lenitivas, além de mitigar o penar do sujeito, ainda contribuem para a diminuição do tempo de vida do sujeito.(1)

A eutanásia passiva, também conhecida como ortotanásia,(2) compreende a interrupção das medidas terapêuticas curativas destinadas à manutenção da vida do sujeito (ou mesmo o não início dessas medidas), de modo que da enfermidade ou condição fisiológica em que se encontra o paciente advenha a sua morte.(3) Por sua vez, a eutanásia ativa é a conduta comissiva que coloca fim à vida de uma pessoa, por sua vontade real ou presumida, nos casos de estágio terminal de vida ou de existência exclusivamente biológica.

No Brasil, não há qualquer lei que trate especificamente do tema da eutanásia e da ortotanásia, sendo ambas as condutas disciplinadas pelo campo de atuação delimitado negativamente pelo Código Penal, bem como por normas infralegais expedidas pelo Conselho Federal de Medicina.(4)

De acordo com o art. 121 do Código Penal brasileiro, aquele que executar uma eutanásia ativa direta estará sujeito às penas do delito de homicídio doloso, não havendo as figuras específicas do “homicídio piedoso” ou do “homicídio por petição” no ordenamento jurídico nacional. Contudo, o § 1º do art. 121 prevê causa de diminuição de pena de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço) se o “o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral”(5), o que pode ser aplicado aos casos de eutanásia ativa.

Já o art. 122 do Código Penal prevê a incriminação da conduta de auxílio ao suicídio, o que veda, em nosso ordenamento jurídico, qualquer hipótese de suicídio assistido. A questão torna-se tormentosa no caso da eutanásia ativa indireta e no caso da ortotanásia.

Sem adentrar com profundidade na discussão, impemde-se pontuar que entendemos, com parte da doutrina, que a eutanásia indireta não poderia ser apenada em razão da conhecida teoria da imputação objetiva. Explique-se. A conduta de se ministrar meios lenitivos que, embora acelerem o inevitável processo da morte, aliviam ou atenuam o sofrimento do paciente em estágio terminal representa o incremento de um risco admitido pelo ordenamento jurídico nacional. Logo, não há sequer que se falar na tipicidade da conduta. O mesmo raciocínio irá se aplicar à ortotanásia

Malgrado o posicionamento acima fixado, segundo a legislação nacional, ambas as condutas poderiam ser apenadas como homicídio por omissão no caso de haver garantes (médicos ou familiares) que se omitirem em manter os meios artificiais que sustentam a vida do paciente. Não havendo garantes, a conduta poderia ser qualificada como omissão de socorro (art. 135 do Código Penal), cuja pena prevista(6) deverá ser triplicada em razão do óbito do enfermo.

Mas a questão não se resolve dessa forma simplesmente. Nem a posição que se fixou acerca da atipicidade das condutas, assim como a posição de que as condutas poderiam ser tipificadas como homicídio ou omissão de socorro, são satisfatórias e precisas para resolver o problema real que se deve enfrentar: o da possibilidade de se admitir o encerramento voluntário da vida humana.

A Constituição Federal garante o direito à liberdade dos cidadãos ao prever, em seu art. 5º, inciso II, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Assim, a princípio, ninguém poderá ser obrigado a se submeter a tratamento médico ao qual não consinta.

Contudo, o art. 146, § 3º, inciso I, do Código Penal descaracteriza o crime de constrangimento ilegal no caso da “intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida”. Disso surgem as questões: existiria um dever legal de manter-se vivo? A liberdade de autodeterminação da pessoa esbarraria e encontraria seu limite na indisponibilidade do direito à vida?

O choque entre liberdade individual e indisponibilidade do direito à vida também é refletido no Código de Ética Médica do Brasil. Em seu art. 31, veda-se ao médico “desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”.

Tudo leva a crer, portanto, que o ordenamento jurídico nacional impõe um limite à liberdade individual da pessoa, limite esse que será marcado pelo indisponível direito à vida humana. Mas o regramento nacional deixa ainda mais complexa a questão.

Esse mesmo Código de Ética Médica vai versar, no art. 41, que é vedado ao médico “abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal”, completando, entretanto, em seu parágrafo único, que, “nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal” (destacamos).

Ora, o texto da norma infralegal reporta-se à hipótese genuína de ortotanásia. Assim, ao vedar a obstinação terapêutica, o Código de Ética Médica assenta como dever do médico deixar que se desenvolva a ortotanásia quando consentida pelo paciente ou por seu representante legal. E não é só.

A Resolução n. 1.805/06(7) do Conselho Federal de Medicina já previa, em seu art. 1º, que “é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal”. Impende informar que mencionada resolução teve seus efeitos suspensos por força de medida liminar proferida, em março de 2008, pela Justiça Federal de 1º Grau em ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal.(8) Mencionada liminar, entretanto, recentemente foi revogada, considerando a Justiça Federal não haver qualquer inconstitucionalidade na mencionada resolução.

Com a decisão judicial,(9) diversos meios de comunicação nacional veicularam a notícia de que a ortotanásia estaria liberada no País. Seria isso verdade? Não nos parece. E isso em razão da inaptidão dos instrumentos normativos (Código de Ética Médica e Resolução do Conselho Federal de Medicina), os quais não possuem qualquer eficácia normativa.

Obviamente, um tema dessa relevância, que trata da vida humana e da possibilidade de exclusão da punição de uma conduta que leva, ao final, à morte de um ser humano, deve ser tratado privativamente por Lei Federal.

Bem por isso, tramita, no Congresso Nacional, o Projeto de Lei n. 6.715, de 2009, que altera o Código Penal para inserir o art. 136-A, com a seguinte redação:

“Art. 136-A. Não constitui crime, no âmbito dos cuidados paliativos aplicados a paciente terminal, deixar de fazer uso de meios desproporcionais e extraordinários, em situação de morte iminente e inevitável, desde que haja consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade, do cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão.

§ 1º A situação de morte iminente e inevitável deve ser previamente atestada por 2 (dois) médicos.

§ 2º A exclusão de ilicitude prevista neste artigo não se aplica em caso de omissão de uso dos meios terapêuticos ordinários e proporcionais devidos a paciente terminal.”

O projeto, recentemente aprovado na Comissão de Seguridade Social e Família e recém-enviado à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, embora não imune a ressalvas, representa grande avanço no tratamento jurídico do tema e trará, se não o inatingível consenso, ao menos uma dose indispensável de segurança jurídica e iluminação a um tema de suma relevância, que, infelizmente, continua sendo tratado por meio do desgastante e incerto exercício de interpretação dos princípios gerais de direito penal.

Finalmente, deve-se consignar que nem nas normas do Conselho Federal de Medicina, tampouco no indigitado projeto de lei, são resolvidos problemas essenciais ao tema, como quem e em que ordem de preferência poderá prestar o consentimento indispensável a não punição da ortotanásia. Quais seriam os requisitos para a validade desse consentimento? Deveria ser ele expresso ou tácito, escrito ou verbal, comum ou esclarecido?

Assim, é possível perceber que o Brasil ainda deve caminhar um longo caminho até que a questão da ortotanásia esteja pacificada no ordenamento jurídico nacional – se é que um dia estará. É indispensável que se reflita sobre o assunto com a seriedade e a dedicação que o tema exige, sem jamais perder de vista que o que se está a tratar é da vida humana, o bem mais valioso do ordenamento jurídico.

NOTAS

(1) ROXIN, Claus. A apreciação jurídico-penal da eutanásia, In Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 08, fasc. 32, out./dez. 2003, p. 194-201.

(2) Ainda encontra-se na literatura a denominação “paraeutanásia”. Nesse sentido, MANTOVANI, Ferrano. Aspectos jurídicos da eutanásia. Fascículos de Ciências Penais, ano 4, v. 4, n. 4, 1991, p. 33.

(3) O que se deve destacar, contudo, é que não será a omissão que matará o sujeito, mas sim sua condição pré-existente, ou seja, a doença, a enfermidade, alguma insuficiência fisiológica ou qualquer outro tipo de condição que esteja sendo contornada artificialmente por tratamento médico, sem o qual a morte seria certa. A afirmação pode soar óbvia, uma vez que é da própria natureza da omissão que outro evento cause os efeitos naturalísticos – no caso a morte – existindo, contudo, um dever imposto por lei de que esse evento seja evitado pelo sujeito garante. Em síntese, na construção da conduta omissiva fazem-se necessárias a existência ou a eminência de uma relação causal (da qual emergirão os efeitos) e a obrigação legal de uma conduta que impeça a ocorrência dessa relação.

(4) Especificamente a Resolução CFM n. 1.805/06 e a Resolução CFM n. 1.931/09 (Código de Ética Médica).

(5) Ressalte-se, entretanto, que a Exposição de Motivos do Código Penal, ao versar sobre o presente dispositivo, exemplifica a hipótese de ortonásia e se refere a essa modalidade como homicídio piedoso.

(6) Detenção de 1 a 6 meses, ou multa.

(7) O qual é anterior ao novo Código de Ética Médica que entrou em vigor em 13.04.2010.

(8) Ação Civil Pública n. 14718-75.2007.4.01.3400, da 14ª Vara Federal do Distrito Federal.

(9) Datada de 1º de dezembro de 2010.

Este artigo foi originalmente publicado em https://www.ibccrim.org.br/noticias/exibir/5211/ por Bruno Salles Ribeiro

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