Responsabilidade penal da pessoa jurídica e sucessão societária

Imagine-se que, em um futuro fictício, um acusado de determinado delito fosse capaz de transferir toda sua personalidade para outra pessoa. Imagine-se ainda que, nesse mundo por nós hipoteticamente criado, essa pessoa fosse capaz de se dividir entre duas outras pessoas autônomas, ou incorporar-se a outra pessoa preexistente, dividindo com ela, a partir de então, todos os traços de personalidade e características das pessoas que eram anteriormente, mas ao mesmo tempo, como não poderia deixar de ser, criando uma nova personalidade, formada pelas duas originais. Não nos seria vedado imaginar que, nesse mundo fantástico, em que as formas e os conteúdos humanos não estão mais vinculados pelo binômio corpo-intelecto, um acusado transferisse toda sua consciência para um novo corpo ou que um condenado pudesse vender seu corpo antigo para uma pessoa idônea em troca de um “preço justo”.

É claro que, diante dessa realidade projetada, toda a teoria do delito deveria ser readequada, pois os padrões atuais de imputação não seriam satisfatórios para a resolução de conflitos que adviriam da dissociação posterior entre o corpo responsável pela execução e o centro de vontade responsável pela cognição da ação anterior ao desmembramento.

E isso porque toda a teoria do delito construída ao longo dos anos tem como parâmetro de executor de ações os seres humanos naturais, os quais sempre reúnem no mesmo sistema natural órgãos responsáveis por sua consciência, percepção e intelecção (sistemas nervosos) e órgãos responsáveis pela execução das ordens (sistemas motores). Até hoje não há notícia de qualquer consciência humana que consiga ter existência autônoma de sua estrutura biológica e a teoria do delito e as noções de ação desenhadas por qualquer das grandes correntes de imputação conhecidas – seja o causalismo, o finalismo ou a teoria da imputação objetiva – tem, obrigatoriamente, como pressuposto essa realidade.

Em outras palavras, sempre tomamos como sujeito da ação aquele que age, que se expressa de qualquer maneira no mundo real, motivado por um comando emanado de sua vontade consciente. Esses dois componentes da ação restam de todo modo fundidos nas ações humanas.

Todos os sistemas de penas elaborados no decurso dos séculos e milênios também partem desse pressuposto óbvio. A pena, pela grande maioria dos séculos, nada mais era do que a aflição ao corpo, com objetivo de se atingir a mente a ele ligado. Hoje em dia, da mesma forma, mas no lugar da aflição, a restrição do movimento. Obviamente, não faria sentido castigar ou aprisionar um corpo que já não mais estivesse ligado à sua mente, salvo pelo efeito simbólico que as penas exercem na sociedade, o que gostamos de acreditar não ser o fundamento primordial da punição.

De tal forma, se um dia conseguíssemos cindir o centro de decisão da pessoa de seu corpo humano, perderíamos toda a ancoragem dos atuais sistemas de imputação penal e das formas de punição e teríamos de caminhar para a busca de um novo sistema de responsabilização penal, que levasse em conta a possibilidade da separação entre o corpo e a mente da pessoa.

Todas essas afirmações parecem, por um lado, óbvias e, por outro, irrelevantes, diante da atual realidade, em que estamos todos presos aos nossos respectivos corpos. Mas, na verdade, todos os efeitos dessa realidade projetada já estão sendo enfrentados pelo Judiciário nacional, sem que ainda se tenha esboçado qualquer caminho para uma solução.

Não é mais nenhuma novidade que a Lei Federal 9.605/1998 inseriu em nosso ordenamento jurídico a responsabilização penal da pessoa jurídica, “regulamentando” a previsão constitucional insculpida no art. 225, § 3.º, da Constituição da República. E as aspas apostas na palavra regulamentando se devem ao fato de que a lei infraconstitucional, repetindo o mandamento expresso na Carta Constitucional passou a prever a responsabilização penal de um ente estranho a toda a construção teórica da dogmática penal e ao próprio sistema jurídico penal pátrio, sem se preocupar com as significantes adaptações que seriam – e ainda são – necessárias à viabilização da implantação desse tipo de responsabilização.

O legislador simplesmente ignorou que esse novo agente(1) inserido no sistema jurídico penal nacional possui características completamente estranhas as do sujeito ativo clássico do delito, qual seja, o ser humano natural, juridicamente reconhecido como pessoa física. Nessa seara, muito já se discutiu sobre a capacidade de ação da pessoa jurídica e também sobre a possibilidade do reconhecimento de sua culpabilidade, ainda que não exista, atualmente, algum consenso sobre esses pontos.

Ocorre que, mesmo que tentemos superar essa discussão, considerando – ainda que, para meros fins acadêmicos – que a pessoa jurídica pode ser considerada um agente diante dos parâmetros construídos pelo sistema jurídico de imputação penal, jamais poderíamos ignorar (como fez o legislador) que esse novo agente é dotado de todas as características desse ser humano futurista por nós imaginado no começo do presente escorço.

Ao contrário dos seres humanos naturais, cuja existência se dá por fatores biológicos e sociais, as pessoas jurídicas existem apenas como uma ficção jurídica, consistindo em um ente originado no campo das ideias, cuja existência se destina à necessidade de se importar uma personalidade abstrata a um coletivo de pessoas ou coisas para fins patrimoniais.(2)  Disso decorrem substanciais diferenças, em relação à pessoa física, quanto ao início de sua personalidade, quanto à sua extinção e, principalmente, quanto à possibilidade de sua composição e reagrupação, as quais, chamaremos, para os fins do presente artigo, de sucessão societária.(3)

O capítulo X do Código Civil (arts. 1.113 a 1.122) e o capítulo XVIII da Lei Federal 6.404/1974 (arts. 220 a 234) tratam da transformação, da incorporação, da fusão e da cisão das sociedades. Além disso, existem diversas operações societárias que acabam por dissociar o centro de decisão da empresa de seu conteúdo patrimonial, como p. ex., a alienação de controle e a alienação de ativos.(4) Em síntese, para o que importa ao presente artigo, releva destacar que em todos esses casos, há uma transformação no centro de vontade do ente moral e, muitas vezes, a própria extinção da personalidade jurídica (arts. 1.118 e 1.119 do CC e art. 219, da Lei das S/A).

Como compatibilizar essa constatação com tudo aquilo que se disse anteriormente sobre a responsabilização penal que, sendo subjetiva, não pode prescindir da identificação de uma vontade consciente e que ainda subsista para que, se for o caso, possa sofrer a aplicação da correspondente pena? Tal questionamento ganha relevância, na medida em que é por todos identificado o movimento que há no sentido de pretender a responsabilização criminal da pessoa jurídica. A pergunta ganha, então, redobrada importância e pode ser assim reformulada: é possível a responsabilização criminal da pessoa jurídica que venha a passar por um processo de transformação, que redefina seu corpo e seu centro originário de vontade, do qual tenha emanado, eventualmente, no passado, um comando para o cometimento de um ato reputado como ilícito penal posteriormente à transformação pela qual passou?

Como já defendemos, julgamos que tal panorama exige a busca pela doutrina de uma nova dogmática. O que se construiu até hoje se calca na realidade do ser humano, ampara-se no dogma da unidade do ser (vontade e corpo). Por tal motivo, o principal objetivo deste artigo é servir de alerta para tal necessidade, inaugurando, oxalá, um debate que será desenvolvido por vozes muitíssimo mais ilustradas. No entanto, como resolver os problemas que se apresentam hoje, antes que seja forjada essa nova dogmática?

Nos campos civil e administrativo, a questão se resolve de maneira mais tranquila. A título de exemplo, o Código Tributário Nacional estabelece, em seu art. 132, que “A pessoa jurídica de direito privado que resultar de fusão, transformação ou incorporação de outra ou em outra é responsável pelos tributos devidos até à data do ato pelas pessoas jurídicas de direito privado fusionadas, transformadas ou incorporadas”.(5) Ainda no que se refere à responsabilidade civil, as partes envolvidas em tal espécie de atos de transformação normalmente acordam contratualmente como se fará frente a consequências de atos pretéritos, com alocação de riscos e constituição de garantias, de parte a parte.

Por outro lado, pensamos que, diante do que nos fornece o ordenamento jurídico atual, não é possível a responsabilização criminal da pessoa jurídica que passa por quaisquer dos processos de transformação previstos pela legislação civil e pela prática societário-comercial. E assim nos manifestamos com apoio na Constituição Federal, que estabelece, em seu art. 5.º, XVL, que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”. Ora, o constituinte originário não restringiu tal ressalva à pessoa física. Falou em pessoa e o antigo Código Civil, então vigente, trazia rol(6) de pessoas jurídicas de direito privado que incluía sociedades civis e mercantis, associações, fundações e partidos políticos, o que evidencia o óbvio: a existência de pessoas jurídicas, bem como de suas formas, eram bem conhecidas já nos idos de 1988. E, lembremos, além disso, que as garantias constitucionais não se interpretam restritivamente. Em suma: diante dos processos de transformação das pessoas jurídicas, condutas anteriores a tal processo poderão, no máximo, gerar a obrigação de reparar o dano causado, isto é, poderá ensejar a responsabilização civil do novo ente moral surgido, mas nunca a criminal.

Tal constatação reforça a necessidade de que, se realmente desejamos a possibilidade de responsabilização criminal da pessoa jurídica, busque-se a criação de uma nova dogmática – talvez e preferencialmente fora do âmbito jurídico-penal – apta a fazer frente a uma nova e complexa realidade, e, eventualmente, de alterações legislativas. Caso contrário, a barreira constitucional continuará impedindo que novas pessoas jurídicas, formadas a partir de outras já existentes, respondam criminalmente por atos cometidos no passado da transformação que as criou.

NOTAS

(1) Não pretendemos adentrar na discussão de se a pessoa jurídica pode ser considerada agente para fins de imputação penal, o que dependeria da discussão acerca da própria legitimidade ativa da pessoa jurídica no âmbito político criminal. Apenas como tomada de posição, afirmamos que entendemos que, diante do atual sistema jurídico de imputação de responsabilidade penal a pessoa jurídica jamais poderia ser considerada autora de determinada conduta, mas sim, viabilizadora.

(2) Nesse sentido, Castelo Branco, Fernando. A pessoa jurídica no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 12: “Apesar de admitir que ‘só o homem é pessoa real’, capaz de ser sujeito de direitos, reconhece em vista do interesse geral a existência de uma pessoa fictícia – de personalidade abstrata –, puramente pensada, mas não realmente existente, ou seja, uma criação artificial da lei para exercer direitos patrimoniais”.

(3) Aqui empregamos o termo sucessão, justamente porque a problemática ocorrerá quando existir uma modificação societária posterior ao cometimento do delito. Já aqui também é possível perceber que nos limitaremos apenas à análise de alguns dos tipos de pessoa jurídica, quais sejam, as sociedades, notadamente as empresariais, em suas formas limitada e por ações, as quais respondem por quase a totalidade das sociedades empresariais personificadas no Brasil.

(4) Disso decorre que o agente pessoa jurídica que cometeu a conduta, posteriormente ao seu cometimento, será decomposto e o reorganizado quanto ao seu centro de decisão e seu conteúdo patrimonial, que é quem sofrerá a sanção penal. Mais do que isso, em certos casos, a pessoa jurídica que hipoteticamente cometeu a conduta delituosa, simplesmente, deixará de existir enquanto personalidade abstrata, como personalidade jurídica, existindo, tão somente, como conteúdo patrimonial, realocado em outra estrutura societária.

(5) Vale destacar que, no âmbito tributário, há jurisprudência que afasta da sucessão as multas de caráter punitivo.

(6) Cf. art. 16 da Lei Federal 3.071/1916.

Este artigo foi originalmente publicado em https://www.ibccrim.org.br/noticias/exibir/5461/ por Bruno Salles Ribeiro

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